quarta-feira, 2 de março de 2011

Pretérito imperfeito

Os olhos, naquela noite chuvosa, não fitavam nada além da TV de plasma. Zeca Camargo, de certo, entrevistava Cindy Lauper para o Fantástico. E ele, infelizmente- depois de um domingo de trabalho mediocremente sucedido na barraca de eletrônicos que montara na rua da feira-, estava compassivo, soturno e lúgubre esperando a padaria fechar.

Enquanto isso não acontecia, pensava em encontrar esporadicamente o seu amigo eletricista, ou o dono da loja de parafusos ou ainda, quem sabe, o Juarez, chaveiro baixinho com quem já dividiu a conta do boteco do bairro.

Estava ali, imóvel. No desejo de saber da vida de algum deles, de comentar sobre o futebol de quarta-feira e à espera que a solidão fosse embora. Acompanhado do jornalista global, da vitamina de mamão e do misto quente, Vitório- jovem de 28 anos, esguio como os homens de descendência espanhola de sua família-, passava as mãos pelos cabelos escorridos enquanto se via numa espécie de inércia da própria alma.

Então sua mente vagava pelo que fora um dia. A bolsa de valores, por incrível que pareça, já lhe rendeu alguns bons trocados como analista de finanças antes de precisar vender controles remotos e pilhas.O curso de inglês, ah, o curso, claro! Lhe trouxe Orlanda, garota deslumbrante, ora evasiva, ora contemplativa e também magra como ele.

Conheceram-se na aula de speaking. Aprenderam juntos a usar o pretérito imperfeito que perdurou até o futuro dos dois, tão incerto quanto o que viviam. Ele escrevia cartas de amor em inglês, para ver se assim não perdia a prática do clichê. Patinavam no Ibirapuera nas tardes de outono e disputavam a maior parte do pudim depois do banho.

Aos 20, tinha a certeza mais duvidosa da face da terra que queria a geminiana e morena clara dos cabelos vermelhos e curtos, como a mulher que passaria suas camisas de microfibra ,faria o jantar e gostasse dele mesmo depois ser demitido da Bovespa. Noivaram por engano de Vitório e imprecisão de Orlanda.

E foi só isso. Não chegaram a dividir a conta de luz nem escolher o piso da cozinha juntos. Ela o deixou depois de alegar que precisava pensar mais nela do que nos dois. Colocou a frente do amor um câncer de útero o qual não queria que Vitório participasse das angústias e observasse trépido as agulhas de tratamento.

A garota ( hoje quase ex-mulher) vinda de Santos criou uma barreira de desilusão e incerteza em Vitório a qual ele até hoje está inapto a enxergar a sua própria felicidade.
O morador do Bexiga continuou vivendo com a mãe e de vez em quando, namora garotas mais novas que ele.

Vitório não parece um homem. Não soube deixar escorrer pelo ralo o sentimento unilateral e nem encarar as novas mulheres como oportunidades. Em seus olhos enxergam-se fossas e lágrimas contidas por não poder desabafar nem com o copeiro.

Encontrava-se vazio. Tão diferente quanto a alegria que a camiseta amarela que vestia transmitia naquela noite. Vitório estava perdido nas lembranças de Orlanda e sem coragem de voltar para casa. Num ultimo suspiro vindo do âmago, tomou coragem para terminar a vitamina e se dar conta de que vive ainda como nas aulas de inglês: se esforçando para compreender as inconstâncias de Orlanda nos verbos do passado.

Um comentário:

Adriana Otero disse...

Amo suas crônicas, e em falar em aula de nglês tamb preciso aprender. To ferrada. Já voltou de viagem?
bjs
ps: Como foi?