segunda-feira, 19 de março de 2012

A casa da altruísta





Espalham-se pelo chão, como arroz de festa em dia de casamento, os botões que servirão nas camisas enviadas aos necessitados da ilha do Bororé, localizada na divisa de Santo Amaro e São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo.


Linhas, carretéis e retalhos compõem a orquestra de aviamentos que criará as roupas humildes para aquela gente sedenta de cuidados.E é na casa da caridosa jovem Wanessa que a missão começa.

Na sala não habitam-se mais moveis intactos. As roupas doadas por gente rica e aquelas que serão consertadas abarrotam-se comunitariamente pelo sofá de ferro com almofadas murchas.

Os mantimentos e as panelas de alumínio já usadas e doadas pela misericórdia dos mais providos de capital fazem parte do kit sobrevivência dessas crianças. Elas, sedentas de leite, arroz, feijão e atenção, esperam ansiosamente a chegada da jovem dos cabelos longos e pele clara.

Recebem felizes os pacotes de doces e os grandes sacos de roupas separadas por ela mesma para atender a pobreza extrema de cada família daquela espécie de vilarejo em plena capital.

As crianças correm pela casa de 3 cômodos e deixam escorrer pelo chão o gelinho de uva que Wanessa preparou. Fazia por eles o que nem as próprias genitoras poderiam se esmerar.

É capaz de detectar as necessidades dos melhores amigos. Empresta e doa roupas novas do seu guarda roupa para Silene, que por muitas vezes chegou encharcada e com frio depois das chuvas do fim de março.

Abrigou por cinco anos uma desprovida de amor fraternal. Uma renegada da família, descontrolada e consumista. Por um lado, Rosana retribuía a hospitalidade dela com armários abarrotados de bolachas, sucos e requeijões. Porém, o cinismo e apatia dela em relação aos que freqüentavam a casa de Wanessa fazia a altruísta perder cada dia mais a consideração por ela.

Crianças moradoras da ilha do Bororé. Água encanada e luz elétrica são luxos


E um dia, não menos que esperado, a vida trajetou um novo rumo para Rosana. Ela viajou com um rapaz que conhecera pela internet e deixou para trás muitas dívidas as quais Wanessa teve que, de uma forma milagrosa, quitá-las. A altruísta hoje respira aliviada a ausência de Rosana, embora a jovem tenha desfalcado seu orçamento durante dois anos.

Além da costura e da comida, Wanessa se preocupava com a alma. A casa sempre repleta de pessoas com doenças de espírito, mais parecia um consultório psiquiátrico com grupos de apoio.

Aparecia de tudo. Ex drogados, drogados assumidos, amantes, conjugues, depressivos, alcoólicos, senhoras idosas e carentes de atenção, desempregados, cancerígenos e egoístas. E ela, mais uma vez, sem pensar nela mesma, dispunha o sofá para aconchegar esses fracos de espírito, e ua atenção para ouvi-los.

Muitos deles, depois de freqüentar a casa dela até altas horas da madrugada para ouvir seus conselhos, desapareciam. Compravam casa, carro novo, realizaram sonho de viajar fora, fazer faculdade, largar o cigarro e não trair mais. Esqueciam da palavra gratidão como retorno do grande comprometimento dela em ver todos livres de seus fantasmas.

Wanessa, se fosse materialista, começaria a cobrar pelas visitas ou sempre pedir algo em troca para as jovens solteiras cujo transmitia critérios, juízos e explanações. Os idosos, que esperariam conscientes pelo dia da partida terrena, distraiam-se pelas longas tardes acompanhadas do café quente feito por ela.

116 Altruísmo  A verdadeira Lei da Natureza   PARTE 1
http://site.suamente.com.br/altruismo-a-verdadeira-lei-da-natureza/

Poderia optar por contar como sofreu a segregação da família, o desprezo dos que se diziam seus amigos ao saberem do acidente que lhe ocorreu na adolescência , e das noites em que esperava aflita a chegada do ônibus que passava em frente à escola pública a qual terminou o antigo colegial. Da tentativa de estupro a qual o irmão planejou para ela, só para ver se a jovem frágil, nos seus 20 anos, deixaria de freqüentar a igreja e se rebelaria por completo.

Ela prefere não entrar em cena. Não aflige os que dela precisam com suas más lembranças.Acanha-se quando percebe que será prova de um registro fotográfico que perdurará além da memória dos que estão ao seu lado.

A altruísta de uma essência caridosa invejável, continua a habitar o mesmo lar repleto de compromisso com os desalienados, carentes e famintos. Permite-se abrigar todo o tipo de obrigação imprescindível para tentar se livrar dela e ver o rosto de uma criança feliz, um jovem firmado na paz de espírito e também dos velhinhos conformados.






quarta-feira, 7 de março de 2012

A eutanásia de um afeto

Nós marcamos a data para desligar nossas dores

Atire a primeira pedra ou as resmas de um poema rasgado quem nunca se preocupou quando uma paixão bem resolvida termina pelas esquinas dos ressentimentos. Quando nos damos conta de que fizemos de tudo para algo se tornasse sólido e compensador, geralmente acontece no momento em que já decidimos cortar as raízes do comprometimento.




Não acredito na narrativa reciclada em que um sujeito prefere pular fora do barco por que tem medo de amar.  O risco que nossos sentimentos correm é de não serem correspondidos na mesma proporção e medida. Mas o que me alivia é pensar que tudo isso faz parte de uma busca de equilíbrio a qual ninguém consegue alcançar.

Muitas vezes por medo de ser amado, colocamos o ego como escudo de nossas mais preciosas sensações. Aquela conversa de que aquele namoro com o homem mais velho não daria certo por conta da diferença de idade, ou o casamento de longa data não suportaria as narrativas mal contadas ou os escorregões (traições), são, primordialmente, desculpas para não continuar acreditando no amor genuíno.






O puro resigno, portanto, deveria estar diante dos contratempos e intolerâncias. Mas para que isso seja possível, um dos dois necessita abster-se do próprio eu e de certa forma, admitir que amar é como andar de mãos dadas no escuro. Muitos tentam por meses, anos, décadas e não colheram resultados significativos. Percebem, enfim, que investiram sementes de perseverança em solo infértil.



Depois das sofridas auto-reflexões que incluem noites em claro, falta de fome e remorsos (por não ter dito o suficiente), homens e mulheres (tanto a menos jovem quanto a mais madura), por exemplo, atingem o conformismo do termino. Não preocupam-se mais em marcar conversas intermináveis e angustiantes e as lágrimas não escorrem visivelmente quando escutam “ué, mas não deu certo por quÊ?

E é ai que optamos por, superficialmente, sermos práticos e calculistas. Apagar o numero da agenda de telefone, rasgar o ex das fotos da festa de noivado-aquelas em que participaram como padrinhos- , cortar vínculos com os amigos e evitar o “leva e traz” das saudades sem volta. Isso me parece os primeiros socorros depois do tombo das emoções.


De repente ele ou ela desaparece da sua vida. E então primos e conhecidos são apresentados para essa nova pessoa ao seu lado. O sexo é deveras estimulante, os defeitos do companheiro não são percebidos logo de cara e a narrativa do casal ainda soa como divertida e ludibriante.

O que talvez -por necessidade do inconsciente – tramite lá dentro do tempo corrido e marcado de cheiro, gostos e percepções ,são as recordações do outro que respiram com a ajuda da esperança remota.

.
É bem semelhante a eutanásia. Só está ligado ao sentimento enquanto se der vazão ao aparelho chamado lembrança. Entretanto, ao contrário da eutanásia, não jogamos fora de uma hora para outra os acontecimentos perfeitos e péssimos. Talvez isso seja uma dádiva.

E o mais doloroso é saber que assim como esse processo, nós é que escolhemos o dia da morte de cada figura do passado e até quando a saudade vai respirar (bem sufocada) lá dentro do coração.

quinta-feira, 1 de março de 2012

A mulher que dormia

E a cumplicidade que não germinou


Ao chegar em casa debaixo da chuva que anunciava o fim do verão, João Carlos deixou as botinas de couro e sintético na soleira da porta do fundo. Entrou pela cozinha e observou o jeito como Doralice batia a massa de torta do jantar. A forma como remexia vagarosa e desfarçadamente os quadris pareciam a ele um convite para deixá-lo mais leve.

Ele, um garçom de uma lanchonete da praça da República tentava um lancete de olhar para alertar sua mulher que estava pronto a ouvi-la em baixo dos cobertores. Apesar da moderada dissimulação que à ela lhe apetecia, Doralice o sabia ouvir. Mas na maioria das vezes se escondia atrás das preocupações alheias e dores de cabeça tipicamente femininas

Não atendia facilmente os desejos de João Carlos. Muito religiosa, procurava agradar bem mais aos santos e ao mesmo tempo bancar-se de uma. A medida em que ele tentava o entrelace das pernas, Doralice dissimulada queixava-se da pouca espiritualidade em que ela se encontrava. Então ajoelhava-se à beira da cama e suprimia o desinteresse sexual em balbucios proclamados a todos os santos que se lembrara.

Após o casamento dos quatro filhos, o sobrado geminado na Mooca tornava-se cada vez mais triste e silencioso. E João Carlos e Doralice na tentativa de espantar a solidão, trocavam passos de um tango improvisado sobre os tacos envernizados.

Como um conjugue atencioso, não faltavam flores na data de aniversário dela nem o sufle de maracujá que tanto Doralice gostava. Levava os cães para passear e não se esquecia do presentea-la com um  par de sapatos todo o mês. A elogiava, mesmo quando não estava impecavelmente bem vestida no vestido rosa claro.




 Ela, desapercebida e gélida, cansava-se rapidamente e preferia tirar o cochilo da cesta. Para o marido, ela preocupava-se com afazeres fora de hora para justificar uma morbidez de comprometimento. João Carlos, a medida dos anos, gostaria de entender na figura lúgubre em que ela foi se transformando.

E novamente, sem motivo aparente, Doralice empenhava-se a ser só uma boa “Amélia”. Passava, cozia e preparava a marmita dele com exímia. Entretanto esquecia de ser só um pouco mulher.

Não mergulhava-se em vaidades fúteis, nem na ansiedade de comprar bijuterias das mais variadas possíveis. O único gosto que fazia era de encobrir os anos grisalhos que habitavam em seus cabelos.


Ele percebeu que naquele parque em que se conheceram há 35 anos, apaixonou-se por uma Doralice singela, doce e mais do que isso, tinha escolhido uma segunda mãe.
Portanto, exausto da inércia em que o casamento estava, João Carlos arrumou as malas depois do café da manhã do sábado de folga e disse que ia visitar os pais no interior. Não a convidou, pois não queria levar consigo o que mais lhe angustiava.


Pela fresta, avistava pela ultima vez a imagem de uma mulher de frente a TV, zappeando canais aleatoreamente. A mulher prestimosa que conhecera se tornou frágil diante da mesmice do cotidiano sem futuro a qual ela mesma planejou. E os votos de comprometimento de amor recíproco que foram plantados na juventude , por um motivo ou pelos vários evidentes, não germinaram há tempo.