quinta-feira, 1 de março de 2012

A mulher que dormia

E a cumplicidade que não germinou


Ao chegar em casa debaixo da chuva que anunciava o fim do verão, João Carlos deixou as botinas de couro e sintético na soleira da porta do fundo. Entrou pela cozinha e observou o jeito como Doralice batia a massa de torta do jantar. A forma como remexia vagarosa e desfarçadamente os quadris pareciam a ele um convite para deixá-lo mais leve.

Ele, um garçom de uma lanchonete da praça da República tentava um lancete de olhar para alertar sua mulher que estava pronto a ouvi-la em baixo dos cobertores. Apesar da moderada dissimulação que à ela lhe apetecia, Doralice o sabia ouvir. Mas na maioria das vezes se escondia atrás das preocupações alheias e dores de cabeça tipicamente femininas

Não atendia facilmente os desejos de João Carlos. Muito religiosa, procurava agradar bem mais aos santos e ao mesmo tempo bancar-se de uma. A medida em que ele tentava o entrelace das pernas, Doralice dissimulada queixava-se da pouca espiritualidade em que ela se encontrava. Então ajoelhava-se à beira da cama e suprimia o desinteresse sexual em balbucios proclamados a todos os santos que se lembrara.

Após o casamento dos quatro filhos, o sobrado geminado na Mooca tornava-se cada vez mais triste e silencioso. E João Carlos e Doralice na tentativa de espantar a solidão, trocavam passos de um tango improvisado sobre os tacos envernizados.

Como um conjugue atencioso, não faltavam flores na data de aniversário dela nem o sufle de maracujá que tanto Doralice gostava. Levava os cães para passear e não se esquecia do presentea-la com um  par de sapatos todo o mês. A elogiava, mesmo quando não estava impecavelmente bem vestida no vestido rosa claro.




 Ela, desapercebida e gélida, cansava-se rapidamente e preferia tirar o cochilo da cesta. Para o marido, ela preocupava-se com afazeres fora de hora para justificar uma morbidez de comprometimento. João Carlos, a medida dos anos, gostaria de entender na figura lúgubre em que ela foi se transformando.

E novamente, sem motivo aparente, Doralice empenhava-se a ser só uma boa “Amélia”. Passava, cozia e preparava a marmita dele com exímia. Entretanto esquecia de ser só um pouco mulher.

Não mergulhava-se em vaidades fúteis, nem na ansiedade de comprar bijuterias das mais variadas possíveis. O único gosto que fazia era de encobrir os anos grisalhos que habitavam em seus cabelos.


Ele percebeu que naquele parque em que se conheceram há 35 anos, apaixonou-se por uma Doralice singela, doce e mais do que isso, tinha escolhido uma segunda mãe.
Portanto, exausto da inércia em que o casamento estava, João Carlos arrumou as malas depois do café da manhã do sábado de folga e disse que ia visitar os pais no interior. Não a convidou, pois não queria levar consigo o que mais lhe angustiava.


Pela fresta, avistava pela ultima vez a imagem de uma mulher de frente a TV, zappeando canais aleatoreamente. A mulher prestimosa que conhecera se tornou frágil diante da mesmice do cotidiano sem futuro a qual ela mesma planejou. E os votos de comprometimento de amor recíproco que foram plantados na juventude , por um motivo ou pelos vários evidentes, não germinaram há tempo.

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